Cristine Takuá: “Lutar Como Mulher é Uma Força Poderosa”

Neste mês de março, a educadora, filósofa e ativista reflete sobre a perda de sentido da humanidade, que não respeita as outras formas de vida, e como isso reverbera sobre todos nós. Fala também sobre o que as mulheres indígenas têm a nos ensinar
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24.03.2022

Cristine Takuá é do povo maxakali, mas vive hoje na terra indígena Ribeirão Silveira, entre Bertioga e São Sebastião, no litoral Norte de São Paulo. O território é habitado por aproximadamente 120 famílias indígenas do povo guarani mbya e tupi guarani.

Há muitos anos Cristine luta, como educadora e mãe de dois meninos, por uma educação escolar que valorize todas as formas de vida – não somente as vidas humanas, mas todos os animais, vegetais, a água, as montanhas, os seres invisíveis.

Temos muito a aprender com os povos indígenas, diz ela, especialmente com as mulheres indígenas, porque elas carregam uma ancestralidade repleta de saberes e fazeres que devem ser compartilhados com as crianças e os jovens.

Nesta entrevista ao YAM, ela nos traz uma sabedoria que celebra a vida, a cultura e a Terra. E faz um chamado poético para a luta e as transformações que precisamos fazer em nossa sociedade.

Como mulher indígena, qual é a sua grande luta hoje?

Cristine Takuá: Minha grande luta hoje é conseguir trazer para as crianças e jovens o sentido maior do equilíbrio e do respeito para com todas as formas de vida. Não só as vidas humanas, mas também as não humanas, os animais, os vegetais, os seres visíveis e os invisíveis. E essa é uma grande luta porque quando falamos em defender os territórios e a demarcação dos territórios não é só pra que nós, nossos filhos e nosso povo possa viver em harmonia, com saúde. Eu penso também na mãe cotia, na mãe paca, na mãe lontra, na mãe samaúma, na mãe sapopemba, na mãe ipê, enfim, em todos os seres, todos os filhotes, na água, nas pedras. Minha luta é para que todas as formas de vida sejam respeitadas.

O que é ser mulher indígena no Brasil de hoje?

Cristine Takuá: Ser mulher indígena significa ser uma raiz profunda de uma memória ancestral, fruto de muita luta, muito sonho, muita beleza, muita delicadeza. Ser mulher indígena é tecer grandes tramas em diálogo com muitos seres, e seres fêmeas também, como a mãe onça, a mãe paca, a mãe cotia, a mãe formiga, a mãe coruja. Ser mulher indígena é viver lutando, viver sonhando, é defender a terra de onde brota a vida, é defender tudo que nos faz resistir. É sonhar e acreditar no sonho como possibilidade de mensagem do fortalecimento do amanhã. É se espelhar na memória ancestral que habita nossa essência primeira e praticá-la no dia a dia, transmitindo esses saberes para as crianças e os jovens. É fazer brotar o respeito do fazer com as mãos, do praticar através da arte, do canto, do rezo. É ser resistência também.

Foto de Cristine Takuá

Como professora e educadora indígena, que caminho você acredita ser mais frutífero em direção a uma educação que realmente promova uma reconexão das pessoas com a terra e com a Terra? O que é preciso acontecer e mudar nas escolas brasileiras?

Cristine Takuá: Como mãe, como educadora, acredito que a educação é um caminho para reconectar as pessoas. Mas, no atual momento, vejo a educação muito pautada em teorias, num modelo quadrado que mais incentiva as pessoas a adentrarem no mercado de trabalho do que praticar o respeito para com todas as formas de vida. A educação precisa ser transformada. Tenho falado muito da escola viva, que é uma escola que respeita os saberes e os fazeres ancestrais como primordiais. Por que a escola tem que ser baseada somente nas letras e nos números? É preciso mudar completamente os currículos das escolas brasileiras para que as pessoas possam, no processo de transmissão e de aquisição de conhecimento, desde criança até a juventude, adquirir saberes que são mais úteis para a vida. E não somente teorias que, na maioria das vezes, são totalmente desconectadas da realidade da comunidade local, do contexto histórico na qual aquela criança e aquele jovem vive. É necessário mudar para que a educação possa promover uma reconexão, uma transformação das pessoas de encontro com a natureza.

O que a sociedade brasileira tem a aprender com a ancestralidade indígena feminina neste momento da história humana?

Cristine Takuá: Nesse momento difícil que vivemos, de pandemia, de um governo genocida que não respeita a vida na sua essência, acredito que a sociedade brasileira tem muito a aprender com os povos ancestrais, principalmente com as mulheres indígenas e essa ancestralidade feminina. A mulher indígena e as avós, bisavós sempre tiveram essa ligação muito forte com as sementes, a terra, com o cuidado e a atenção um com o outro, com o corpo, com a criança. Então, a educação sempre foi muito próxima. Nas sociedades indígenas não existe creche, não existe asilo, não existe hospício. Esse modo de atenção e cuidado com o corpo é um saber ancestral dos povos indígenas que a sociedade brasileira precisa reaprender para sair daquele lugar de depressão, de suicídio, de violência. Precisa enxergar a grande família que coabita o mesmo território e que juntos devem remar o seu barquinho na mesma direção. Isso é o sentido de família.

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Foto de Cristine Takuá

Hoje diversos movimentos e práticas feministas buscam resgatar, de alguma forma, o que chamam de sagrado feminino, que muitas vezes traz referências culturais de povos originários. O que você pensa sobre isso?

Cristine Takuá: Toda busca é válida e necessária nos tempos de hoje. Mas há também muitos movimentos que buscam um recurso financeiro através desses rótulos do sagrado feminino, do xamanismo, que usam dos saberes ancestrais indígenas para conseguir status, recurso e isso não é bem-vindo. Acredito que a partir do momento que você se aproxima dos saberes ancestrais para um autoconhecimento, um fortalecimento, aí sim é válido porque toda a sociedade tem no seu sangue, na sua origem ancestral, uma raiz indígena. Reconectar-se com a sua essência deveria ser o princípio de toda a sociedade, mas isso precisa ser visto com muito cuidado, delicadeza e muito respeito, na verdade.

A Terra como essa grande mãe de todas as formas de vida do planeta tem sido exaustivamente destruída pelos homens. Vandana Shiva, grande ativista indiana, costuma dizer que “as forças que marginalizam, oprimem e dominam a natureza são as mesmas que marginalizam e oprimem as mulheres”. Faz sentido para você?

Cristine Takuá: Muito. Vandana Shiva é uma mulher que eu admiro muito. É uma grande pensadora, grande guerreira, uma mulher que me inspira muito. Costumo dizer, já há algum tempo, que a Terra vem sendo estuprada e que esse estupro da Terra está reverberando sobre todos nós, porque a humanidade perdeu o sentido, uma vez que não respeita as outras formas de vida. Quando o rio é assassinado, é manchado pelo mercúrio ou outras diversas contaminações, é como se você estivesse estuprando a Terra, porque os rios são as veias da Terra.

Acredito que as forças que marginalizam, que dominam e violentam a natureza são as mesmas que marginalizam também a nós mulheres. Todo o capitalismo, todo esse movimento colonial que historicamente estuprou mulheres vem hoje através do agronegócio, da mineração e de todo esse império da ordem e do progresso estuprando as nossas florestas, os nossos rios, as nossas montanhas. Precisamos muito parar, silenciar e redirecionar. Enquanto a ordem e o progresso imperarem no Brasil, não sei até quando a terra suportará tanta violência.

Foto de Cristine Takuá

Muitas mulheres indígenas e de comunidades tradicionais estão hoje em situação de maior vulnerabilidade no Brasil em diversos aspectos, sobretudo por causa da degradação de seus territórios. Ainda assim (ou talvez por causa disso), muitas estão à frente de iniciativas pela regeneração da terra (e você é um exemplo disso). Você sente esse protagonismo feminino também nas lutas indígenas? O que ele nos mostra ou simboliza?

Cristine Takuá: Muitas mulheres hoje são protagonistas de muitas lutas. E existem muitos movimentos de mulheres brotando, buscando respeito dentro de seus próprios territórios, dizendo basta à violência, ao estupro, ao abuso, buscando o diálogo no mesmo patamar que os homens. Mulheres que estão à frente contra a mineração, pela luta da educação escolar indígena, que estão na luta pelo reconhecimento das suas medicinas tradicionais. Só que muitas mulheres, quando se colocam na frente dessas lutas, passam a ser perseguidas dentro e fora dos territórios porque o machismo ainda existe.

Muitos homens ainda ficam assustados, amedrontados quando uma mulher se levanta para defender o direito de ser mulher, o direito do modo de ser mulher, que é bonito, é belo e deve ser compartilhado com o coletivo de mulheres. Vejo que está cada vez mais forte o protagonismo feminino dentro das lutas, não só na luta do movimento indígena em si, mas também na política. E isso é tão importante! Lutar com o seu modo de ser mulher, essa é uma força muito poderosa.

Neste mês de março, em que comemoramos as conquistas das mulheres e reforçamos os desafios que ainda temos pela frente, o que você, como mulher indígena, gostaria de poder celebrar, reivindicar, dar voz?

Cristine Takuá: Acredito que a gente não tem muito o que celebrar. A gente tem muito é que silenciar, se colocar num estado meditativo, de reflexão, de entender todos os processos históricos, não só das mulheres indígenas, mas do ser mulher como um todo, e do quanto é importante não só no mês de março, mas em cada dia do ano, em cada estação do ano, em cada fase de lua, em cada amanhecer, em cada entardecer, anoitecer todos nós pararmos pra pensar o quanto é sagrado e importante a figura da mulher, da mãe, da avó, da menina. A mulher dá vida a um novo ser. Ninguém existe sem uma mãe, sem uma avó. Então, o sagrado que habita em nós mulheres deve ser respeitado, assim como a nossa sensibilidade, nossas intuições, nossos processos telepáticos, nossos sonhos.

O ser mulher é um ser sagrado que precisa ser reverenciado, precisa ser escutado a cada dia, a cada momento porque assim como a mulher faz brotar a vida, a terra faz brotar a nossa existência, a água, os alimentos e tudo, o nosso ar que a gente respira. Celebrar o pensar na reverência a uma mulher significa pensar na nossa própria existência, na nossa resistência, nossa sobrevivência. Então, salve a todos os seres femininos, não só os humanos, mas todos os seres femininos que habitam a nossa Terra. Aguyjvete.*

*Em guarani, Aguyjevete é um agradecimento, uma saudação aos parentes quando chegamos em sua morada e também uma maneira de expressar alegria por um encontro.