Ler A Terra dos Mil Povos (Peirópolis), do índio tapuia Kaká Werá Jecupé, é conhecer uma parte imensa da história do Brasil, apagada por milhares de anos. É conhecer profundamente as tribos indígenas, que aqui já estavam muito antes da chegada dos portugueses. O modo de vida deles, exímios navegadores, seus valores, a forma como se relacionam com a Mãe Terra, portadores de uma espiritualidade sofisticada, não só enriquece a cultura, mas também o viver. Sim, aprende-se muito com a cultura tão rica dos tupis, guaranis, xavantes…
A obra de Kaká revela, ainda, mentiras propagadas, estereótipos e a chocante dizimação e escravização de inúmeras populações. Por que esses fatos foram extintos dos registros? Como isso nos afeta? Pois a literatura indígena brasileira, da qual o entrevistado é um dos precursores, nos ajuda a honrar nossas gentes, fazer o luto dos genocídios e violência praticados contra eles e, além disso, trocar sabedorias.
Kaká Werá, também ativista, professor, conferencista e difusor dos saberes e valores ancestrais, atua como terapeuta há mais de 25 anos. Além disso, facilita processos de autoconhecimento, autoliderança e desenvolvimento pessoal, utilizando os fundamentos da sabedoria milenar da tradição tupi. Há cerca de 20 anos trabalha na formação de jovens lideranças, com foco no cooperativismo e na transformação social, sendo um dos fundadores do Programa Guerreiros Sem Armas, do Instituto Elos, que já formou mais de 1500 jovens de 20 países.
Kaká lançou A Terra dos Mil Povos em 1997, que ganhou uma segunda edição revisada traduzida para o francês e alemão, e muitas obras. Nesta entrevista, ele relata algumas das grandes omissões, distorções e valores dos primeiros habitantes do Brasil.
Quando você escreveu A Terra dos Mil Povos, qual era o seu objetivo?
Kaká Werá: O meu objetivo era apresentar para educadores, de maneira geral, uma ideia mais abrangente das civilizações e dos povos do Brasil e suas visões de mundo, que não começa no século 16, começa milhares de anos atrás. A ideia inicial foi essa, porque, até então, toda a informação que se divulgava na educação sobre índio era muito rasa, superficial e limitada.
O que aprendemos sobre o 22 de abril é que é o dia do “descobrimento” do Brasil, em 1500, quando os portugueses chegaram nas terras que hoje pertencem ao Brasil. É a essa superficialidade que você está se referindo?
Kaká Werá: A partir de 1500 é explorada uma ideia, que está no imaginário do brasileiro, de que índio é preguiçoso, de que índio é um estorvo ao progresso, de que índio não tinha nenhuma cultura. Isso é um desserviço. Isso vem a partir do século 16 e foi escrito pelos historiadores dos séculos 16 e 17. Mas o que aconteceu, na verdade, foi a escravização indígena e isso a gente não aprende. Houve um século de escravização indígena. Todas as antigas estradas e primeiras vilas do Brasil foram erguidas com mão de obra escrava indígena e isso a gente não aprende. E a gente não aprende também essas culturas e valores. Então, a maneira como a história é contada, a partir do século 16, desestrutura a sociedade brasileira como um todo.
Afinal, quais são os grandes impactos decorrentes disso, como isso afeta as populações indígenas até hoje e o que a população brasileira perde ao ignorar essa parte da nossa história?
Kaká Werá: Ao ignorar a história ancestral dos povos, das civilizações do Brasil, a sociedade brasileira perde muito. Perde, primeiro, um conhecimento de visões de mundo, de sabedorias, que, ainda hoje, são importantes para a gente entender de uma maneira mais abrangente ecossistemas, a ecologia, relações comunitárias, relações sociais. Segundo ponto: perde também do ponto de vista psicológico porque 63% da população brasileira tem matriz indígena (esse dado é resultado de uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG, de 2005) e não conhece quase nada dessas raízes matriciais e isso causa uma certa dor, um certo trauma quando você não conhece a sua ancestralidade, o seu passado ancestral. Causa, inclusive, uma baixa autoestima. Existe um livro, O Espelho Índio, de um psicanalista chamado Roberto Gambini, onde ele fala disso, dessa baixa autoestima do brasileiro, justamente em decorrência do fato de você não conhecer suas origens.
Quais foram as grandes atrocidades cometidas contra os povos indígenas?
Kaká Werá: Primeiro o genocídio de povos. Segundo estudiosos, calculava-se mais de 20 milhões de pessoas aqui no Brasil e 80% dessa população foi dizimada. Segundo, a escravização dos povos. Foram escravizados por 100 anos, ou mais, só substituído pela escravização dos negros. E terceiro a perseguição, porque depois da escravização dos negros, os povos indígenas passaram a ser perseguidos e caçados. E, por fim, a invisibilização social. O índio foi considerado inexistente até a década de 50. Depois dos anos 50, foi quando descobriram que tinham muitos povos por aí por conta da expansão do Brasil. Isso porque, até a década de 50, o Brasil ainda era mais o litoral e quando foi expandindo para o centro – Goiás, Mato Grosso, Amazônia – foi se percebendo que havia povos indígenas ainda. Esses foram alguns fatores.
Tem havido uma reparação histórica de valorização dos povos indígenas, das atrocidades cometidas e da sua importante e valiosa contribuição para o Brasil?
Kaká Werá: Ainda não houve reparação das atrocidades dos povos indígenas. Isso não existe e é algo que precisa ser feito. Demarcação de terras ainda não é uma reparação e não há total demarcação de terras necessárias. Demarcação de terra é um direito. E uma terra demarcada não é de um povo indígena. É da UNIÃO emprestada para os índios viverem.
O que nós precisamos aprender com os povos indígenas?
Kaká Werá: Essa é uma pergunta que eu não gosto porque é uma pergunta que nos separa. Uma pergunta que vai contra a visão de mundo dos povos indígenas que diz que não há separatividade, que todos nós somos filhos da mesma mãe, que é a Mãe Terra. Essa coisa de branco, de vermelho, preto, amarelo, isso não consigo responder porque isso vai contra a visão de mundo indígena de que não há separação entre branco e índio. Somos todos irmãos, somos todos filhos da Terra.
Mas o que nós precisamos aprender uns com os outros: o que acontece é que cada cultura tem uma bagagem de experiências, de aprendizado, que se transforma em conhecimento. Por exemplo, as culturas europeias, as culturas ocidentais desenvolveram determinados conhecimentos, ciências, tecnologias e, com certeza, nós podemos aprender. E as sociedades chamadas indígenas também desenvolveram determinadas tecnologias. Por exemplo, a tecnologia da sustentabilidade, a arte de viver mantendo a natureza viva que pode ser oferecida para as sociedades não indígenas. Então, isso sim é possível trocar e um aprender com o outro.
Quais são as principais diferenças entre os povos da floresta e o homem branco?
Kaká Werá: As diferenças entre quem vive na floresta e quem vive na cidade são grandes. Mas há também diferenças entre culturas da própria cidade e culturas da própria floresta. O que eu quero dizer com isso é que essa questão das diferenças, não há diferença só entre povos indígenas e não indígenas. Há diferenças entre pessoas, entre nações, entre estados, entre grupos. A diferença é a coisa mais natural que existe e toda diferença é sadia. Se a gente respeitar as diferenças e acolher a contribuição de cada uma, isso nos leva à uma expansão de consciência.