Temos Tempo para o Descanso?

Fazer pausas para descansar a mente e o corpo se tornou um inconveniente na era do desempenho. Mas, se quisermos nos manter sãos, precisamos dar ao repouso o valor que ele merece
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06.10.2021

Na primeira metade do século XX, o filósofo britânico Bertrand Russel projetou um futuro irrecusável. Segundo ele, a tecnologia facilitaria tanto as coisas para nós, que o expediente de trabalho se encurtaria drasticamente, liberando uma polpuda fatia de tempo para o descanso e o lazer. 


Em seu ensaio Elogio ao Ócio, publicado em 1935, o intelectual vislumbrou que uma rotina arejada e livre nos tornaria “mais afáveis e menos obstinados”. Sinto por Russel, autor desse colossal engano, e mais ainda por nós, viventes do século XXI. Afinal, na era do desempenho, em que atividades se sobrepõem ditadas pela pressa, descansar se tornou heresia, afronta, corpo mole. Ainda que estejamos em pleno colapso. Como pudemos naturalizar o fazer incessante, algo que nos faz tão mal?


Basta! O descanso merece ocupar um lugar à altura da sua importância para a saúde física, mental, emocional e espiritual. A analista junguiana suíça Verena  Kast concorda com Bertrand Russel ao enfatizar que carecemos de mais horas ociosas, libertas de qualquer expectativa de produtividade. “O ócio permite que sejamos humanos, que brinquemos sem consciência pesada, permite também o desenvolvimento das nossas imaginações e a expressão dos nossos sentimentos e humores”, ela escreve no livro A Alma Precisa de Tempo (Vozes).


“É urgente descansarmos. Precisamos, como sociedade, recriar espaços de descanso, pois é somente nesse hábito de descansar que pode surgir o novo, o impulso do movimento e da criatividade e podemos digerir as experiências vividas”, corrobora Sabrina Schwab, terapeuta corporal especialista em Sistema Nervoso e professora de Yoga Restaurativa e Yoga para Trauma.

Pintura com casal deitado na cama
Imagem: In Bed, de Henri de Toulouse-Lautrec

É preciso notar o cansaço antes dele se tornar exaustão

O lado trágico dessa história é que muitas pessoas sequer percebem que precisam relaxar, dormir, devanear, passear, o que quer que renove suas energias. “Nossa vida anda tão atropelada que só percebemos o cansaço quando ele já se tornou exaustão (burnout) ou doença. Então, perceber é o primeiro passo. Depois, fazer as coisas de maneira mais lenta. Sentindo a cadência interna da mente e do corpo. Assim poderemos agir com mais presença e notar que é necessário fazer pausas”, detalha Sabrina.


Quando nos desobrigamos de performar e nos permitimos fluir num embalo próprio, complementa Verena, nos damos a chance de “nos sentir em harmonia com nossos ritmos fisiológicos e com as necessidades do nosso mundo interior”. Estão aí duas cruciais vertentes para a gente prestar atenção e começar a perceber que tipo de repouso é bem-vindo momento a momento. Um restauro do corpo, orgânico; um afago na alma, imaterial e atemporal?


Realmente, não é fácil frear o automatismo que nos leva a tomar mais um café expresso em vez de cochilarmos, ou checarmos pela vigésima vez as redes sociais quando poderíamos nos sentar num canto silencioso e fechar os olhos por cinco ou dez minutos. Porém, podemos aprender a nos dar essa permissão.


A Yoga Restaurativa, por exemplo, nos convida à entrega e ao contato com o suporte do chão. Um descanso ativo que nos conduz a um lugar de calma e conforto na mente e no corpo. “A entrega precisa de confiança e segurança para acontecer, e pelo apoio dos materiais que usamos na aula, possibilitamos ao corpo confiar que pode ceder ao cansaço e encontrar o descanso”, esclarece Sabrina. Nesses instantes preciosos, temos a oportunidade de regular o sistema nervoso e, na calmaria da pausa consciente, atinar para o fato de que não estamos em constante ameaça. Sim, parar é seguro; repousar, um ato de amor.

A Ayurveda ensina que o grande restauro vem do sono

Quando o assunto é descanso, a recomendação fundamental da Ayurveda é durma, zele pelo seu sono, chamado de nidra. “À noite, nossos sentidos estão exauridos e temos um relaxamento completo do corpo e da mente durante o sono, o que contribui para a saúde física e mental e para a forma como nos relacionamos com os outros”, explica a nutricionista e terapeuta Laura Pires, professora do curso YAM Ayurveda: Ciência da Vida, Alimento para a Alma.


De acordo com os textos védicos, o uso excessivo dos órgãos do sentido favorece desequilíbrios no nosso sistema, causando doenças. Como abusamos deles na atualidade, dormir as horas necessárias e com qualidade se torna ainda mais fundamental. “Um sono adequado proporciona uma boa libido, bom intelecto e boa memória, além de um corpo fortalecido”, lista Laura.


Ao longo do dia, a especialista recomenda muita auto-observação. Assim sabemos a medida daquilo que temos que fazer, ou seja, respeitamos nossos limites e nos cansamos menos. “A atenção plena nos faz perceber quando estamos exagerando no uso de algum sentido específico ou quando não estamos gerando estímulos adequados para outros, pois as duas possibilidades acarretam distúrbios para a mente e para o corpo”, complementa Laura. 


É por isso que a Ayurveda preconiza práticas que contemplam os cinco sentidos, justamente para contrabalançarmos excessos. Quem trabalha o dia todo no computador, por exemplo, está exaurindo a visão. Então, é preciso dar descanso a ela estimulando outros sentidos. Há, por exemplo, a abhyanga, automassagem com óleo vegetal, feita pela manhã.  É o momento de acordar o toque, a pele, acalmando o sistema nervoso, e também aguçar o olfato por meio do aroma do óleo. E, na hora de escolher um hobby, prossegue Laura, escolha algo que também proporcione esse “contrapeso” aos órgãos do sentido.

Pintura com mulher deitada em uma praia com a Lua
Imagem: La Lune, de Jacques Prévert

Se descansamos, o planeta também descansa

O que os povos originários, íntimos dos ciclos naturais, têm a nos lembrar sobre o descanso tão negligenciado por multidões viciadas no fazer ininterrupto?


“A natureza do corpo reflete a natureza do planeta e de todas as formas de vida. Um dos princípios ecológicos é o de que tudo o que existe para manter-se em equilíbrio tem atividade e repouso, expansão e contração, dia e noite. Por isso, o descanso é a primeira condição para a saúde individual e coletiva”, afirma Kaká Werá, escritor e ambientalista, descendente do povo Tapuia e acolhido pelos Guarani, junto aos quais desenvolve uma extensa pesquisa histórica, linguística e cultural.


Segundo ele, no descanso corpo e alma são nutridos. O primeiro se refaz; a segunda, se apazigua. “Porém, a sociedade contemporânea tem um excesso de atividade e uma deficiência de inatividade, isso consequentemente promove também o desequilíbrio ambiental”, associa Kaká. 


As coisas se encadeiam da seguinte forma: Se estamos hiperativos e focados na produtividade, os níveis de consumo serão maiores, como também os danos causados ao planeta. E se, na correria das atividades não cuidamos de aspectos básicos para a boa saúde, como descansar, aí é que não vamos cuidar da Terra mesmo. 


Assim como a Ayurveda, a visão indígena ressalta a importância do sono e dos sonhos para a regeneração do nosso ser como um todo. De acordo com a sabedoria ancestral, submergir no vasto oceano onírico cumpre vários papéis. É fonte de regulação fisiológica e psíquica, mas também de um contato mais profundo com a espiritualidade.


Para muitos povos nativos, os sonhos abrem portais para outras dimensões, de onde surgem orientações e ensinamentos a serem concretizados no cotidiano. Uma ampliação de consciência, sem dúvida.


Portanto, quando for para a cama, capriche nos preparativos, crie um ambiente tranquilo e aconchegante. Seu corpo, sua mente e seu espírito merecem embarcar nessa viagem fora do tempo e do espaço.  E retornar dela verdadeiramente despertos e revitalizados. 

Conheça 7 tipos de descanso 

Existem muitas formas de descansar para além do sono sagrado de todas as noites. Até porque, somos feitos de múltiplas camadas e cada uma delas requer cuidados específicos. É só a gente se ouvir com mais atenção e saberemos o que precisa ser feito. 


Também é importante ressaltar que essa trégua que oferecemos a nós mesmos não pode se restringir ao período de férias, que, aliás, também se tornou um privilégio negado a muitas pessoas no atual cenário trabalhista. Na verdade, momentos restauradores precisam ser tão naturais em nosso cotidiano quanto saciar a sede ou a fome. 


Confira, a seguir, 7 tipos de descanso preconizados pela médica estadunidense Saundra Dalton-Smith, autora do livro Sacred Rest: Recover Your Life, Renew Your Energy, Restore Your Sanity (Descanso Sagrado: Recupere sua vida, renove sua energia e restaure sua sanidade, em tradução livre):

1

DESCANSO MENTAL

Distração, lapsos de memória e equívocos tolos são sinais de que a mente está superlotada, com dificuldade de realizar o mais simples processamento. Nesse caso, vale caminhar ao ar livre, pisar na grama, meditar num ambiente tranquilo ou ouvir sons da natureza, ainda que seja por meio de áudios.

2

DESCANSO EMOCIONAL

Se as emoções estão apertadas num nó, o melhor a fazer é admitir: sim, estou triste, desanimado, com medo. E buscar a companhia de pessoas queridas e confiáveis, com quem nos sentimos livres para desabafar ou que nos façam rir e nos ajudem a olhar o por vir com mais claridade. 

3

DESCANSO ESPIRITUAL

Quantas vezes numa única existência nos sentimos perdidos, desconectados de uma força maior e sem propósito para o passo seguinte? Nas horas escuras faz um bem danado contemplar a natureza, agradecer por cada pequena bênção que nos trouxe até aqui ou participar de algum ritual purificador.

4

DESCANSO SOCIAL

A sensação de não pertencimento pode nos convencer de que estamos fadados à solidão e ao isolamento. Não, seres humanos são gregários e precisam conviver e trocar experiências. O recomendado aqui é a adesão a grupos que partilham interesses comuns. Pode ser um clube de leitura, um grupo de corrida, uma turma de dança etc.

5

DESCANSO SENSORIAL

Hoje em dia, a maioria das pessoas passa o dia grudada em telas, invadida por imagens e sons diversos. É inacreditável como nos deixamos abusar pelo excesso de estímulos até pouco antes de dormir. Para sair desse ciclo vicioso, precisamos abrir janelas de desconexão, tempo longe das distrações eletrônicas. Cozinhar, cuidar das plantas, pintar, bordar. O que você escolhe?

6

DESCANSO CRIATIVO

Se estamos exaustos, como vamos ter novas ideias, boas sacadas, insights para os nossos projetos? Não tem como. O jeito é passear com o espírito aberto para garimpar referências inspiradoras. Visitar uma exposição, mergulhar num livro de fotografias, assistir a um espetáculo de dança ou teatro. Enfim, atravessar pontes para o sublime e voltar a suspirar. 

7

DESCANSO FÍSICO

Uma rotina entupida de tarefas e deveres consome nossas reservas energéticas. O corpo fadiga e entra em alerta. Se aprendermos a ouvi-lo, perceberemos que, na verdade, ele quer outro tipo de vivência: se mexer, se alongar, dançar, nadar, andar de bicicleta, enfim, voltar a ativar uma energia prazerosa e revigorante. ▲