Sabe quando alguma coisa é ‘tudo de bom’? Pois o setor de reciclagem é assim: por natureza, só traz impactos positivos à sociedade. Ele promove um trabalho fundamental de conservação ambiental, limpeza urbana e saúde pública, gera trabalho e renda para milhares de pessoas e ajuda na proteção dos rios e oceanos. Além disso, a reciclagem reduz, de um lado, a pressão para a extração de matérias-primas industriais e, de outro, a necessidade de mais aterros sanitários. Quer mais? É um setor que tem um papel educativo essencial em nossos hábitos de consumo. A todo momento, ele nos ensina que quase todo material merece uma segunda chance, um novo uso, uma reciclagem que movimenta a economia de maneira circular, inteligente e muito mais sustentável.
Se pensarmos que geramos anualmente 2 bilhões de toneladas de lixo no planeta (número que não para de crescer) e que um percentual muito baixo desse volume é reciclado, chegamos ao óbvio: o setor de reciclagem tem um potencial gigante de crescimento e expansão. Para se ter uma ideia, em 2018 menos de 1% de todos os resíduos coletados no Brasil foi reciclado. Em 2020, 74,4% dos municípios no país apresentaram alguma iniciativa de coleta seletiva. Mas, em muitas cidades as ações ainda são muito pontuais e não abrangem toda a população.
Estamos muito aquém das nossas metas relacionadas à gestão dos resíduos sólidos, especialmente quando focamos na coleta dos materiais recicláveis. E isso atrapalha um setor que tem muito a nos oferecer. O estudo “Retomada Verde Inclusiva”, divulgado recentemente pelo Instituto ClimaInfo, mostra que ao não coletar, separar e recuperar os recicláveis, o país perde a chance de criar nada menos que meio milhão de empregos. E, pasme, o desperdício de verbas públicas com os diversos serviços que envolvem transporte e destinação de materiais recicláveis para aterros sanitários (que não deveriam ser seu destino final) chegou a R$ 5 bilhões em 2018. Os dados são da Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública (Abrelpe).
Ainda tem mais: aumentar o volume de material reciclável coletado abre a chance de novos mercados, serviços e produtos. Da mesma forma, quanto mais reciclamos, menos extraímos da natureza e menos impactos geramos com a abertura de novas áreas para aterros sanitários.
Em 2020, por exemplo, o Brasil gerou 82,5 milhões de toneladas de resíduos, quase 226 mil toneladas por dia, segundo levantamento da Abrelpe. Isso significa que, em média, cada brasileiro produziu mais de um quilo de resíduo por dia. Só na cidade de São Paulo são coletadas 12 mil toneladas de resíduos diariamente. De acordo com o movimento Recicla Sampa, plataforma de comunicação e engajamento na coleta seletiva da capital, apenas 50% desse lixo deveria ir para os aterros sanitários. Isso porque metade do volume coletado pela prefeitura é material que poderia girar a roda virtuosa da reciclagem e evitar o desperdício de quase R$ 600 milhões por ano.

Cooperativas dão força à economia local
Na cidade de São Paulo, estima-se que cerca de 20 mil pessoas trabalham como catadores de materiais recicláveis. Formalmente, são 25 cooperativas de reciclagem conveniadas à prefeitura e mais de 120 ecopontos, que são locais de entrega voluntária de restos de pequenas obras, móveis velhos, poda de árvore e resíduos recicláveis.
A Coopercaps é uma das cooperativas em atividade na cidade. Criada em 2003 com 22 trabalhadores, hoje ela conta com 400 cooperados em seis unidades e espera fechar o ano somando 500 postos de trabalho. A conta que eles divulgam em seu site parece promissora: a cada 4 toneladas a mais de materiais coletados, uma nova vaga é criada. “Ano passado coletamos 22 mil toneladas de resíduos recicláveis e faturamos R$ 16 milhões. Desse total, mais de 80% foi distribuído aos associados”, conta o fundador da cooperativa, Telines Basilio do Nascimento Júnior, mais conhecido como Carioca.
“Hoje somos uma franquia social com uma metodologia que pode ser replicada em outros lugares. Além disso, a inclusão social aqui é algo muito natural, faz parte do nosso negócio. O perfil dos nossos cooperados mostra bem isso. Temos refugiados, LGBTQIA+, 63% são mulheres e 49% têm mais de 50 anos de idade”, completa.
Segundo ele, ainda existe preconceito em relação aos catadores. “Ainda são muito desvalorizados, mas a profissão é reconhecida pela Classificação Brasileira de Ocupação (CBO) e trabalhamos muito para avançar no respeito e na percepção de que somos agentes importantes na sociedade”, ressalta Carioca. Quem percebe as benesses criadas pela categoria, agradece. É que o dinheiro desses trabalhadores acaba circulando dentro de suas comunidades. Exemplo disso é a unidade em Paraisópolis, uma das maiores comunidades da cidade. Lá é a economia local que se beneficia, porque o dinheiro dos cooperados se espalha pelos mercadinhos, cabeleireiros e outros comércios e serviços oferecidos na região.

Consciência que faz a diferença
A cidade de São Paulo é referência na coleta seletiva, embora esteja longe de coletar e destinar à reciclagem 10% dos recicláveis. “Aqui saímos de uma taxa de reciclagem de 1% para 5,5% ou 6%. Ainda é pouco, mas o avanço foi grande”, conclui o fundador da Coopercaps.
Ex-morador da capital, o engenheiro civil Breno Junqueira Figueiroa notou a falta da coleta seletiva logo que se mudou para Ubatuba, no litoral paulista, durante a pandemia. “Fiquei assustado com o lixo que vai para o mar e senti vontade de fazer algo para ajudar. Não tem coleta seletiva da prefeitura na cidade. Só tem ferro velho, catadores informais e uma cooperativa ainda em início de atividades”, relata.
Para mudar esse cenário ele criou há um ano a Boomerang Reciclagem, que coleta todo tipo de recicláveis (lixo eletrônico, inclusive) em mais de 400 residências e comércios em toda a extensão do município. “Coletamos entre 500 kg e 600 kg por dia, atendendo 2% da população, incluindo os quilombos de Caçandoca e Camburi, onde antes os moradores queimavam os recicláveis”, diz Breno.
A estrutura da empresa reflete os conceitos de seu criador. No galpão alugado, os 9 funcionários trabalham com carteira assinada e cesta básica, e o veículo que realiza as coletas é elétrico, financiado pelo Desenvolve São Paulo, programa do governo estadual que oferece empréstimo para projetos sustentáveis. “Logo no início percebi que não seria sustentável percorrer os 100 km de extensão de Ubatuba com um custo enorme de gasolina e muita emissão de CO2”, ele explica.
Para poder investir mais e expandir o negócio social, ele vive à procura de editais. “Hoje temos 9 postos de trabalho e já atingimos a capacidade máxima do galpão e do nosso veículo. Mas aqui na cidade, conversando com o secretário de Meio Ambiente, sei que precisamos de mais 6 Boomerangs, ou seja, temos muito espaço para crescer e para dividir com outras empresas também, e podemos gerar muito mais empregos”, complementa Breno.
Aliás, quando fala sobre seus funcionários, Breno é só alegria. “Eram pessoas desempregadas, que mal sabem ler e escrever, um deles é ex-detento. Hoje todos têm pix e conta no banco, voltaram para a escola e o pouco que recebem representa uma mudança importante na vida deles e de suas famílias”.
Mesmo sabendo que ainda há muito a ser feito, Breno comemora toda pequena conquista. “Cada papel de bala que sai do chão conta. Porque sai do meio ambiente e é revertido para alguém. Isso é bom demais e a população reconhece isso. Já tivemos ajuda dos moradores para comprar nossa prensa e consertamos o carro com uma vaquinha feita entre as pessoas atendidas por nós. Eles sempre nos agradecem e isso nos motiva a seguir em frente”, diz Breno.

Tudo começa na esquina de casa
Se você está se perguntando o que pode fazer para se engajar nessa história, vale muito a pena conhecer a história do Ionilton Aragão, liderança comunitária e fundador do projeto Varre Vila, na Vila Inês, zona Leste de São Paulo.
Dez anos atrás, o bairro tinha muitos pontos viciados de despejo inadequado de lixo. Era todo tipo de resíduo, que se acumulava em muro de escola e posto de saúde, tudo errado. “Como eu já fazia um trabalho social, me chamaram para ajudar. Tinha uma rotatória que recebia todos os dias o lixo de mais de 1500 pessoas. Chegamos para trabalhar com a população, para mudar aquele comportamento”, conta Aragão.
Seis meses e muitos mutirões de limpeza depois, os moradores estavam conscientes de sua parte na manutenção da beleza do bairro. “A prefeitura tem o compromisso de recolher o lixo, mas cada morador deve fazer sua parte, colocando os resíduos nos locais corretos e perto do horário em que a coleta é feita”, diz ele, em referência ao problema de animais que violam sacos de lixo, além da chuva que arrasta os resíduos e entope as galerias pluviais, agravando as enchentes.
Aragão sabe que para falar em reciclagem é preciso antes que as pessoas aprendam a dispor o lixo corretamente. Um passo de cada vez. “No metrô, a eficiência da limpeza inibe o comportamento ruim da população e gera um cuidado com o território, uma valorização que vira zeladoria comunitária. É isso que buscamos aqui. Não pode ter um papel no chão”, reforça.
Segundo ele, as pessoas se acostumam com tudo limpo e isso gera respeito, melhora a autoestima delas e até valoriza os imóveis. O Varre Vila hoje dá consultoria para outros bairros paulistanos e mais de 20 cidades, entre elas Curitiba, Maceió, Guarulhos e Cubatão. O projeto busca parceiros em cada local para contratar zeladores, que são moradores do bairro responsáveis pela varrição das ruas e promoção da limpeza.
Agora sim dá para falar em coleta seletiva. “Incentivamos o tempo todo os moradores a separar os rejeitos comuns dos materiais recicláveis e estamos sempre em contato com escolas, postos de saúde, associações de bairro etc. realizando atividades de conscientização. É muito bom ver o envolvimento das crianças e suas famílias nessas ações. Toda pequena atitude faz muita diferença”, conclui Aragão, com um sorriso de satisfação no rosto.
