O uso indiscriminado de agrotóxicos gera malefícios para a saúde das pessoas e do meio ambiente. Esse fato é tão amplamente conhecido que os próprios fabricantes não economizam esforços e verbas, tanto em marketing quanto junto a lobistas, para mudar o nome do produto para pesticidas. Assim, se pretende simbolizar que os venenos matam pestes – retirando da equação as assim chamadas espécies não alvo: pessoas e animais, bem como a degradação de rios e solos.
Antes mesmo do início da guerra entre Rússia e Ucrânia, Jair Bolsonaro fez uma viagem ao país agressor, justamente representando o setor agropecuário. O motivo alegado foi que a importação de fertilizantes seria indispensável para manter a produção de alimentos em solo nacional, consolidando a ideia de que o potássio importado seria essencial para que a terra brasileira possa dar bons frutos.
Os fertilizantes russos são realmente eficazes, especialmente para manter o nível de produção de grandes monoculturas como soja e milho. Exaurindo o solo, plantando sem descanso, ele não consegue se regenerar sem o uso de elementos químicos artificiais. Da mesma forma que esses cultivares ocupam grandes extensões de terra, ‘a perder de vista’, a jornada dos agrotóxicos desde a fabricação, seu uso, efeitos e descarte são processos invisibilizados.
Algumas pessoas acreditam que lavar bem frutas e verduras, deixar hortaliças de molho e escová-las antes de consumir podem ser cuidados suficientes para eliminar os agrotóxicos. Essa forma de irreflexão separa o plantio da alimentação e dos efeitos subsequentes, tanto no meio ambiente quanto no corpo humano. Como um produto aplicado na terra antes, durante e depois da germinação das sementes poderia deixar de atuar ao ser enxaguado?
Assim como existe uma dificuldade em visualizar o uso de agrotóxicos como um processo, com começo, meio e fim, existe ainda outro aspecto que passa despercebido: depois de utilizar os agrotóxicos na plantação, para onde vão os recipientes nos quais eles chegaram?
Todos os sentidos da palavra lixo
Existem regras rígidas para o correto descarte das embalagens de agrotóxicos que, nada difícil de imaginar, nem sempre são seguidas à risca. A legislação ambiental de 1989, Lei nº 7.802, regula essa questão e detalha as instruções a respeito do assunto.
Os defensivos devem ser armazenados em um local seguro e exclusivo, que permaneça trancado e inacessível a pessoas e animais, longe de alimentos e rações. Precisam ser colocados sobre estrados ou prateleiras sobre piso impermeável, cobertos, em local protegido, sem infiltrações ou rachaduras. Podem ser guardados nas embalagens originais por um período máximo de seis meses após a data do prazo de validade.
Depois de utilizadas, as embalagens laváveis vazias necessitam passar por tríplice lavagem e serem perfuradas. As embalagens não laváveis devem ser mantidas intactas, adequadamente tampadas e sem vazamento. Já as embalagens flexíveis contaminadas devem ser acondicionadas em sacos plásticos impermeáveis e serem devolvidas ao fabricante através de uma Unidade de Recolhimento de Embalagens Vazias, indicada na nota fiscal de venda, até um ano após a aquisição.
Não podem, é claro, ser armazenadas incorretamente, em armazéns com goteiras ou animais circulando, próximos a depósitos de ração, mantidas após o prazo de validade, jogadas em aterros ou descartadas de nenhuma outra forma inadequada, sob risco de causar grave contaminação a pessoas, animais, rios, solo, meio ambiente.
Podemos, então, considerar dois cenários: um em que as embalagens são utilizadas e descartadas corretamente; e outro no qual nem todas as regras são seguidas com o devido cuidado. E o que acontece, então?
Primeiro cenário: quando a reciclagem acontece
Digamos que todas essas regras foram seguidas. A história acaba aqui, então, quando as embalagens retornam ao fabricante? Não. Elas não desaparecem em um passe de mágica, e necessitam passar por algum processo de reciclagem. 95% dos recipientes de plástico, metal ou papelão podem ser reciclados. Os 5% restantes são as embalagens flexíveis e aquelas que acondicionam produtos não miscíveis em água, e estes são, então, incinerados.
Os produtos da reciclagem se dividem em 17 artefatos como barricas de papelão, tubos para esgoto, cruzetas de poste de transmissão de energia, embalagens para óleo lubrificante, caixas de bateria automotiva, conduítes corrugados, barricas plásticas para incineração, dutos corrugados, tampas para embalagens de defensivos agrícola, embalagens para o próprio defensivo agrícola.
A logística reversa formada por esse ciclo de produção-venda-uso-retorno, no Brasil, é chamada de Sistema Campo Limpo e gerenciada pelo Instituto Nacional de Processamento de Embalagens Vazias (inpEV). Envolve um grande gasto de energia, tempo, dinheiro e gera bastante impacto dos diversos processos e transportes sobre o meio ambiente.
Segundo cenário: os problemas que as embalagens causam
Não é necessário um grande esforço de imaginação para pensar que nem todas as regras descritas acima foram seguidas. As embalagens podem não estar exatamente vazias, mas sim com algum resíduo do veneno que continham. Se depositados em locais inapropriados, os recipientes causam severos danos à saúde humana e animal. Ao atingir o solo, adquirem potencial de alcançar mananciais hídricos e contaminar o lençol freático, tornando a água dos rios imprópria para o consumo.
Dessa forma, o descarte incorreto de agrotóxicos pode afetar dramaticamente espécies não alvo, causando prejuízos sérios à biodiversidade, influindo nas redes alimentares e impactando ecossistemas aquáticos e terrestres.
Para quem acredita que agrotóxicos atacam apenas as “´pestes”, pesquisas publicadas pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e pelo Ministério da Saúde identificam, entre os problemas de saúde causados por agrotóxicos, lesões nos rins, alterações cromossômicas, vários tipos de câncer, doenças hepáticas, doenças respiratórias, redução da fertilidade, problemas no sistema nervoso, convulsões, mal de Parkinson e distúrbios de comportamento. Há, ainda, forte correlação entre casos de suicídio e trabalhadores que manuseiam agrotóxicos.
Um outro cenário é possível
Assim como a logística reversa das embalagens percorre um caminho interminável – uma vez que podem voltar ao ciclo no formato de embalagens do próprio agrotóxico – desde a produção, uso, descarte, reciclagem e reintrodução do produto no ciclo, podemos pensar no processo de cultivo e consumo de alimentos da mesma forma.
Existe toda uma história anterior à invenção dos defensivos químicos. As florestas sempre produziram alimentos, antes mesmo do surgimento da agricultura. Os povos originários têm uma sabedoria ancestral de manejo, respeito aos ciclos da natureza e manutenção da vida baseada, é evidente, na produção de comida.
Alegar que o solo do Brasil é pobre em potássio ou que a ausência de estações climáticas bem definidas prejudica a produção de alimentos exige, mais uma vez, não enxergar processos e ignorar a realidade que se apresenta frente aos nossos olhos.
É claro que o uso de agrotóxicos é extremamente conveniente para produzir lucros para a agropecuária baseada na monocultura. Daí a não perceber que existe uma forma mais segura, natural e saudável de produzir alimentos é algo situado longe do limite do razoável.
A alimentação orgânica, baseada em agroecologia, é capaz de suprir toda a necessidade de comida da população brasileira que, aliás, hoje em grande parte passa fome. Nos últimos dois anos, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar grave saltou de 10,3 milhões para 19,1 milhões.
Por isso, o discurso de que os agrotóxicos são indispensáveis para alimentar os brasileiros não se sustenta em um cenário em que tantas pessoas sequer têm comida para a próxima refeição. Sair do discurso do agronegócio e repensar o uso de agrotóxicos não só é pop, é extremamente urgente. ▲