Pode ser em vasos dentro de casa, no quintal, no jardim do condomínio, no canteiro da escola, na praça do bairro, no terreno abandonado, em qualquer lugar. Plantar alimentos nas cidades tem se mostrado uma poderosa ferramenta de regeneração do espaço urbano e da qualidade de vida das pessoas. Tanto é assim que a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) classifica a agricultura urbana hoje como principal estratégia para a segurança alimentar e o combate às mudanças climáticas. E as hortas urbanas são um exemplo muito valioso nesse sentido.
“Historicamente, em contextos de crise, como o que vivemos atualmente, a agricultura urbana sempre desponta. Com a população empobrecida, plantar comida passa a ser crucial para evitar a fome e também gerar renda para os trabalhadores das hortas”, explica o gestor ambiental André Biazoti, mestre em Agricultura Urbana e integrante dos coletivos Movimento Urbano de Agroecologia (Muda SP) e Coletivo Nacional de Agricultura Urbana (CNAU).
“Além disso, as hortas urbanas reduzem os chamados ‘desertos alimentares’, lugares da cidade onde não chegam produtos frescos como frutas, verduras e legumes. Plantar nesses lugares é fundamental e as pessoas sabem onde tem terreno ocioso, conseguem essas articulações territoriais, embora sejam necessárias políticas públicas”, acrescenta André.
Para ele, existe um potencial muito grande no Brasil para a agricultura urbana. Anos atrás, em 2007, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e a FAO fizeram um levantamento em 11 regiões metropolitanas do país, contabilizando mais de 600 iniciativas. “Precisamos fazer um novo mapeamento, aproveitando a temática mais presente e isso deve acontecer em breve, por meio de uma parceria entre o CNAU e a Fiocruz”.
No fim do ano passado, um estudo feito pelo Instituto Escolhas constatou ser possível alimentar os 20 milhões de habitantes da região metropolitana de São Paulo contando apenas com a produção local de legumes e verduras de 60 hectares plantados, o que reduziria significativamente as perdas e desperdícios gerados nos trajetos mais longos feitos atualmente. Outra vantagem: essa mobilização para tornar a cidade autossuficiente nesses produtos geraria em torno de 180 mil oportunidades de trabalho e renda.
Hortas urbanas: naturalmente multifuncional
E são diversos os benefícios dos plantios urbanos. “As hortas têm uma multifuncionalidade muito forte nas cidades. Elas ajudam na manutenção de áreas verdes, aumentam a permeabilidade do solo (evitando enchentes), viram refúgio para a fauna e flora silvestre, combatem ilhas de calor etc.”, lista André.
“Além disso tudo, tem a questão da ocupação de áreas ociosas e, para as pessoas, a função educativa e também terapêutica, de saúde mental mesmo. Sem falar que a agricultura está na base da nossa identidade, é algo que ajuda a resgatar lembranças de família, saberes antigos, formas de armazenar sementes. É uma ponte para um resgate cultural e a defesa do território, a noção de pertencimento”, reforça.
Transformação do espaço urbano
Em Florianópolis, Ataide Silva coordena a Horta do Parque Cultural do Campeche (PACUCA), com cerca de 8 mil m². Voluntários da comunidade se revezam para manter os plantios, cuidar da compostagem e dos canteiros que ficam a 80 cm do chão. “Por serem elevados, os canteiros são mais apropriados às pessoas mais velhas e até cadeirantes. Outra coisa é que a horta atrai muitos idosos e gente que sente saudade de capinar uma roça, usar uma enxada”, conta Ataide, que também é presidente da Associação de Amigos do PACUCA.
“A importância das hortas urbanas está também na destinação correta das áreas públicas. Onde antes havia lixo, vandalismo, abandono, as hortas transformam o espaço, geram socialização das pessoas, viram local de encontro, de amizades”, afirma Ataide.
Para ele, as hortas são ainda pontos estratégicos para a destinação dos resíduos orgânicos domésticos que, por meio da compostagem, viram adubo e biofertilizante, evitando que sejam transportados para aterros e lixões, com economia de dinheiro público. “Aqui, recebemos os resíduos de mais de 400 famílias. São cerca de 100 toneladas de resíduos transformados em produtos que ajudam a manter a horta e geram uma economia circular, sem desperdícios”, conta.

Reconexões via hortas urbanas
Além dos diversos benefícios para a sociedade e o planeta, as hortas urbanas podem ser pontos valiosos de nos conectar de novo à terra. “Do ponto de vista do coração, toda forma de agricultura urbana é uma oportunidade de reconexão com o alimento, algo essencial à vida. Sabemos que quanto mais perto ele está de nós, mais saudável ele é, tem mais nutrientes, zero agrotóxicos e chega mais fresco na mesa das pessoas”, diz Lara Freitas, arquiteta biourbanista, permacultora e mestre em Gestão Urbana.
“Sem falar que saber plantar comida nos dá mais consciência sobre o alimento. Ele passa a ter outro valor e isso cria uma nova camada de nutrição em nós, que vai além da alimentação em si. É como imprimir dinheiro, é muito empoderador”, completa.
Além disso, diz Lara, horta é sempre um lugar terapêutico, de centramento. “Um jardim comestível é um local de reconexão com a natureza, seus ritmos, ciclos e movimentos. E isso nos ajuda a reequilibrar nossos próprios movimentos internos também”, defende ela, que é cofundadora do Instituto Ecobairro, organização atuante na regeneração das cidades através de iniciativas comunitárias locais.
Mas há ainda outro benefício que vem com as hortas urbanas. “Elas são uma oportunidade de retecer o espírito comunitário porque pedem trabalho em equipe. Isso cria pontos nas cidades que ativam o trabalho comunitário, a noção de pertencimento. Em praças, por exemplo, as hortas são incríveis para as crianças, geram espaços públicos melhores, criam laços entre as pessoas”, ressalta Lara.
Como e por onde começar
Veja algumas dicas dos especialistas ouvidos nesta matéria para inspirar você a criar uma horta urbana:
1
CONECTE-SE COM UM GRUPO DE INTERESSE
Se você tem vontade de ter uma horta perto de casa, procure pessoas que também possam ter esse interesse, compartilhe isso com elas. “É até heroico querer fazer tudo sozinho, mas um processo coletivo bem cuidado tem mais chances de funcionar ao longo do tempo”, sugere Lara Freitas.
2
PESQUISE AS OPORTUNIDADES DO ENTORNO
Procure levantar espaços ou locais que poderiam receber a nova horta. Pode ser uma praça, uma esquina, um terreno abandonado. Tem sol por lá? Tem disponibilidade de água? É importante levantar esses aspectos.
3
PODE SER UM ATO DISRUPTIVO, MAS É LEGAL ENVOLVER O PODER PÚBLICO
Algumas iniciativas nascem do trabalho e da vontade de pessoas que se juntam para plantar, sem o envolvimento ou aval da prefeitura. “Em algumas cidades, vale começar pelo caminho disruptivo mesmo, até porque muitas vezes a prefeitura nega o pedido dos moradores. Mas depois, com o tempo, quando a horta já está estabelecida, é importante procurar o poder público para dar apoio”, afirma André Biazoti.
4
COMECE COM VEGETAIS MAIS RÚSTICOS
“Começar pelas plantas alimentícias não convencionais (PANCs) pode ser interessante porque elas trazem uma resistência que as hortaliças convencionais não têm. São mais selvagens, mais rústicas”, comenta a permacultora Lara.
5
PESQUISE, ESTUDE E COMPARTILHE CONHECIMENTO
Na internet existem milhares de pessoas e organizações compartilhando experiências com agricultura urbana. Aproveite essas informações, envolva-se em cursos de horticultura, permacultura e afins. Muitas vezes a prefeitura oferece cursos de capacitação. Uma dica é baixar a cartilha Hortas Urbanas – Moradia Urbana com Tecnologia Social, produzido pelo Instituto Pólis em parceria com a Fundação Banco do Brasil.
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Hortas urbanas exemplares
Reunimos 7 hortas inspiradoras em diferentes cidades para você conhecer mais e se engajar no movimento da agricultura urbana:
Horta das Corujas | São Paulo
Uma das mais conhecidas da capital, a horta fica na Praça das Corujas, Vila Beatriz. Foi criada em 2012 pelo Movimento dos Hortelões Urbanos, após a autorização da subprefeitura local para ocupar parte da praça pública. Aberta à população, a horta se mantém com o trabalho e a ajuda de voluntários que organizam e participam de mutirões. Atualmente, os encontros ocorrem às terças-feiras, das 9h30 às 11h30 e é preciso levar as próprias ferramentas (e usar máscara).
Além da Horta das Corujas, os Hortelões Urbanos facilitam a criação de outras hortas comunitárias, realizam eventos de trocas de sementes e mudas e compartilham experiências sobre o plantio doméstico.

Cinturão Verde Guarani Mbya | São Paulo
Na capital paulista, a produção agrícola dos indígenas da etnia Guarani Mbya soma 50 mil m² na zona Sul da cidade. Um estudo da prefeitura em parceria com o projeto Ligue os Pontos coletou informações de 428 unidades produtivas que são referência para o cultivo sustentável de alimentos no ambiente urbano. Destas unidades, 110 ficam em terras dos Guarani. A produção supre as necessidades das famílias indígenas e não é comercializada.
Segundo o estudo feito pelo Centro de Trabalho Indigenista, na tradição guarani, os alimentos verdadeiros são aqueles produzidos a partir de variantes dos cultivos que as divindades guarani possuem em suas moradas celestes – e são uma das condições para se ter corpos mais saudáveis, imitando o comportamento das divindades.

Horta Social | Sete Lagoas, MG
Criado há 40 anos, o programa da prefeitura reúne 24 quilômetros de plantios orgânicos em diversas hortas comunitárias, que geram renda para 320 famílias da cidade. Com a pandemia, que agravou a insegurança alimentar dos mais vulneráveis, o projeto passou a doar alimentos frescos para entidades da sociedade civil, alimentando mais de 800 pessoas diariamente.
Sete hortas comunitárias integram o projeto social. Para participar, os moradores são selecionados pelos centros de assistência social da prefeitura, recebem treinamento e são absorvidos na horta mais próxima de sua residência. A única contrapartida é fornecer parte da produção às escolas municipais.

Hortas do Dirceu | Teresina
As hortas comunitárias da região do Dirceu, na capital piauiense, formam um cinturão verde de cerca de 40 hectares e garantem trabalho e renda a 200 horticultores. Em 2017, as hortas integraram o projeto urbanístico da prefeitura que recebeu o Prêmio “Cidade para as Pessoas”, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), na categoria Mobilidade Sustentável. A ação de requalificação, que deve ser concluída no fim do ano, vai valorizar os 4,5 km de plantios comunitários, com melhorias urbanísticas como ciclovias, passeios para pedestres e, especialmente, um parque linear cujo centro são as hortas.
De acordo com o projeto, as hortas locais geram renda para as famílias envolvidas, fornecem alimentos para a região e definem a paisagem urbana do bairro ao ocupar áreas antes ociosas e degradadas. Ainda fortalecem laços comunitários, aumentam a sensação de coletividade e resgatam a cultura das famílias acerca de técnicas agrícolas.

Horta de Manguinhos | Rio de Janeiro
Na favela de Manguinhos, a longa faixa verde que ocupa o equivalente a quatro campos de futebol foi criada em 2013. Ela rende 2 toneladas de comida por mês (que alimentam 800 famílias) e tem hoje o título de maior plantação urbana da América Latina.
Antes da horta, a área era uma espécie de cracolândia, frequentada por usuários de drogas, com muito lixo, entulho e pragas urbanas. Hoje a Horta de Manguinhos integra o projeto Hortas Cariocas e é local de brincadeiras para muitas crianças. Os produtos colhidos ali são destinados às cozinhas da comunidade e complementam as refeições das famílias que enfrentam dificuldades na pandemia.

Horta da Pituba | Salvador
Criada há 5 anos, a horta é a primeira das 54 que fazem parte do projeto da prefeitura Hortas Urbanas Salvador, implantadas em comunidades, escolas, terreiros e postos de saúde. A Horta da Pituba funciona em um terreno todo cercado e com cerca de 300 m². Vinte voluntários trabalham nos cuidados com os plantios, doados para asilos da cidade.
“Além das hortaliças, legumes e ervas, contamos também com um biodigestor, caixas de abelhas sem ferrão com acompanhamento da UFBA e um pátio de compostagem a ser inaugurado em breve, que receberá os resíduos orgânicos dos moradores e restaurantes da região”, conta o agente de transição Claudio Galvão.

Horta do PACUCA | Florianópolis
Na área do Parque Cultural do Campeche, tombado como patrimônio histórico da cidade, 8 mil m² viraram uma poderosa horta comunitária, modelo para toda a cidade. Desde 2015, moradores da comunidade do Campeche, no Sul da ilha, plantam alimentos e ervas medicinais em mutirões que envolvem também estudantes e muitos turistas.
Os canteiros elevados a 80 cm do solo facilitam a participação de idosos e até cadeirantes. Os alimentos são levados gratuitamente para cinco comunidades carentes, além de grupos indígenas, quilombolas, escolas municipais, asilos, hospitais e cozinhas comunitárias.
Além da produção agrícola, a horta recebe resíduos orgânicos de mais de 400 famílias da região. Com um sistema de compostagem em sistema termofílico, os resíduos viram composto e biofertilizante para enriquecer os plantios.
